À Margem – Desde a onda de protestos de junho passado, a mídia tradicional brasileira vem enfrentando a “concorrência” de mídias alternativas, produzidas por manifestantes. No seu entendimento, o trabalho dessas “mídias sociais” tem impactado os grandes jornais, ou eles estão “pregando ao fiel” apenas?
Nilson Lage – Existe no Brasil um oligopólio de empresas centrais – três de São Paulo (Estado de São Paulo, Folha de São Paulo-Uol e Abril (Veja) – e uma do Rio de Janeiro (Globo)), que comanda a rede de televisão hegemônica, com cobertura nacional, destino de 60% das verbas de publicidade do país e detentora de audiência maior do que a soma de suas concorrentes. É através desses canais que flui quase toda informação jornalística primária sobre fatos de interesse nacional.
Os veículos regionais estão atrelados a esse oligopólio e, salvo exceções, limitam-se a cobrir fatos de interesse local. A Globo teve a habilidade de constituir sua rede de televisão associando-se a grupos políticos hegemônicos locais, de natureza oligárquica, o que amplia e dá suporte legislativo a seu domínio.
Essa é uma estrutura que se repete por toda a América Latina, com exceção de Cuba, que transformou a comunicação em monopólio estatal. As grandes empresas de comunicação dos continentes (América Central e do Sul) são consolidadas por mecanismos regionais de natureza econômica e política que se formam a partir da Segunda Guerra Mundial: o conjunto de financiadores (bancos privados) e anunciantes (as principais agências de publicidade, a maioria dos fabricantes multinacionais de produtos de consumo) suportam a aliança política consolidada na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), com sede em Miami, e organismos congêneres.
Pesquisa recente mostra que a Internet é o meio de comunicação que mais cresce entre os brasileiros. Mais de metade da população tem acesso à rede e 25% fazem isso diariamente: de segunda a sexta-feira, com intensidade média de 3h39 minutos, e, nos finais de semana, por 3h49. A maioria dos usuários (84%) utiliza computador, mas 40% também conectam a web no telefone celular.
A mídia alternativa (blogs, portais independentes) é basicamente constituída de comentaristas, parte deles jornalistas profissionais. Raramente publica informação própria nova, mas traduz e repercute informação da mídia estrangeira. Tem, ainda assim, papel relevante na alimentação de grupos de opinião pública divergentes daquele que se orienta apenas pelo oligopólio.
As mídias sociais (Facebook, principalmente) vêm sendo utilizadas para mobilização de pessoas em manifestações com objetivo variados.
ÀM – É plausível falar em cobertura isenta na situação atual brasileira?
Lage – A mídia oligopolizada faz oposição unânime à atuação do estado na economia, mesmo como regulador da atividade produtiva e comercial; é pela privatização e multinacionalização de todas as riquezas do país, pela redução ao mínimo do papel do Estado exceto na área de defesa interna etc. Sua integração com os interesses geralmente definidos como ocidentais – com prioridade absoluta para os dos Estados Unidos – a fez opor-se ao trabalhismo brasileiro e ao Partido dos Trabalhadores que, por via indireta, incorporou alguns dos princípios que se materializam na imagem política de Getúlio Vargas, que governou o país de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954: unidade nacional integrando as diferentes etnias e migrantes; nacionalismo (definido neste contexto – portanto, não étnico, pelo contrário) e papel relevante do Estado na gestão da economia, incluindo atuação direta, se e quando necessário; desenvolvimento econômico; ocupação do território; incorporação das populações oriundas da escravidão e da cultura extrativista originária; negociação como base para solução dos conflitos. Essa última característica é levada a extremo pela figura de Luiz Inácio Lula da Silva.
ÀM – Da mesma maneira, a credibilidade da cobertura dos protestos está em cheque? O senhor mencionou que “o noticiário sobre o que se passa aqui, ultimamente, anda tão realista quanto os contos de Andersen”. Em que sentidos?
Lage – Congregada no que uma diretora da Associação Nacional dos Jornais definiu como “oposição real” pela falta de eficiente oposição política, a orientação editorial exagera, em geral, os movimentos de contestação, estimula a violência tanto de manifestantes quanto da polícia, combate as iniciativas do governo na área social por mais bem sucedidas que sejam, e mantém a tensão possível do noticiário.
O mote mais frequente de suas campanhas é a denúncia de casos de corrupção. Como sempre acontece em países em que não há repressão política a ser denunciada ou crise econômica visível, a corrupção é uma espécie de Judas: como sempre existe em qualquer sociedade e se oculta por natureza, pode-se exagerá-la à vontade e é impossível negá-la.
Embora não suprima por inteiro o relato da realidade (a reportagem funciona, principalmente em instantes dramáticos, em que a agenda não é determinada pelos editores), o controle editorial resulta em distorção.
No campo da economia isso é visível. Embora o Brasil, com sua extensão e população gigantescas, diversidade regional e problemas de formação de mão de obra, mantenha taxa de desemprego baixa (pouco mais de 4%), a ameaça de desemprego é tema constante na imprensa. Do começo ao último dia do ano, anunciam-se perspectivas sombrias e números negativos (do PIB, da balança comercial, do fluxo de caixa do governo etc.) que se desfazem quando publicadas as estatísticas; a catástrofe é , então, empurrada para o futuro.
Da perspectiva da maioria da população brasileira – ainda dos que têm o que reclamar – o quadro pintado (e exportado) pela mídia é de uma realidade que não é a efetivamente vivida.
ÀM – Tem se disseminado um discurso muito forte contra a Copa (e de maneira tardia, visto que os gastos já foram feitos), baseado em inverdades e distorções em muitos casos, como se viu com a reportagem da revista France Football. Essas distorções são fruto de insatisfação ou de um discurso deliberado contra o governo?
Lage – A denúncia do gasto com os estádios é uma espécie de grito de guerra que busca mobilizar o descontentamento causado em doze das maiores cidades do país por grandes obras urbanas, que vão da abertura de vias a melhorias nos aeroportos. São obras muito grandes e realizadas simultaneamente, o que dá a impressão de gigantismo perdulário, embora todos reconheçam a necessidade e até urgência da maioria delas. A própria utilização do evento para fins publicitários pelo governo – com nível de competência abaixo do aceitável – contribuiu para esse efeito.
Para se entender os problemas vividos por quem vive no Brasil a partir de uma perspectiva dinamarquesa, é preciso considerar as enormes diferenças – território (8,5 milhões de quilômetros), população (perto de 200 milhões de habitantes) e história. Objetivamente, o povo brasileiro está em constituição com suas três raças historicamente formadoras e mais recentes imigrantes asiáticos em contínua miscigenação, que é um traço nacional. A revolução industrial (ou seu equivalente para fins demográficos) ocorreu há algumas décadas, adensando cidades que não dispunham de estrutura pra receber gigantescos excedentes populacionais. A adaptação da cultura extrativista e da agricultura de subsistência à vida urbana é também recente ou contemporânea.
Para se ter uma ideia das transformações, basta lembrar, por exemplo, que o índice de natalidade evoluiu, em 40 anos, de 5,7 por mulher para 1,9 por mulher, ou que, nesse mesmo período, a população das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro dobrou; a de Manaus, centro industrial da Amazônia, quadruplicou, e centenas de cidades médias se formaram, além da capital, Brasília, fundada em 1960 e hoje com quase três milhões de habitantes – mais a metade da população da Dinamarca.
ÀM – Na questão do texto da France Football e no caso dos médicos cubanos, lamentavelmente pessoas online – incluindo alguns jornalistas – disseram que não é necessário checagem de fatos para saber que é verdade, e que refutar as inverdades é “tapar o sol com a peneira”. Essa atitude tem se demonstrado comum no jornalismo brasileiro? Por que?
Lage – Há jornalistas e jornalistas. A profissão é de livre acesso e praticamente não regulamentada no Brasil, o que, em particular, me desagrada bastante: jornalista, sobretudo em colunas de opinião, termina sendo todo sujeito que o dono de veículo decide transformar em jornalista.
Mesmo entre jornalistas competentes há os que são venais, os que se associaram profissionalmente a instituições (empresariais, confessionais, partidárias) e os que, sem terem convicções próprias, dizem ou escrevem o que parece mais conveniente. O que caracteriza a profissão é o compromisso com a verdade factual, com o que se constata, e isso está longe de ser o forte do jornalismo que se pratica apaixonadamente na mídia oligárquica Brasil.
ÀM – Convencionou-se entre a esquerda o termo jocoso “PIG” para se referir aos grandes jornais e televisões. O termo golpista seria uma descrição apropriada? São palpáveis os interesses políticos da grande mídia?
Lage – Esse nome, PIG, partido da imprensa golpista, foi inventado pelo Paulo Henrique Amorim, um jornalista antigo (trabalhou na Realidade, da Editora Abril, na década de 1960), muito combativo e ligado a gente do governo.
ÀM – No seu ver, o que essa mídia tem feito para “guiar a população” em direção aos seus interesses?
É mais adequado a mídia guiar-se pelo interesse das populações do que pretender guiá-las no que imagina ser do interesse delas. E o caso é que a grande mídia brasileira é orientada por um segmento da população minoritária que se sustenta com base em privilégios legais que perderam sentido, como as exageradas prerrogativas de médicos e advogados cujo serviço é inalcançável para o poder aquisitivo da maioria do povo. Por detrás deses agentes há forças econômicas liberadas pela globalização e nada sensíveis à realidade contingente.
ÀM – A morte do cinegrafista Santiago Andrade foi tratada – com certa razão – como um ponto de virada para as manifestações populares no país. No entanto, a atenção dada a morte do cinegrafista é incomparavelmente maior a que foi dada as outras (estimadas) nove vítimas fatais dos protestos desde junho passado. Por que?
Lage – No ritmo em que as coisas evoluem, esse “ponto de virada” já é praticamente passado. O que aconteceu é que a estranha aliança entre grupos supostamente ultra-esquerdistas e o pensamento mais conservador (que predomina na orientação da grande mídia) sofreu uma fratura quando um dos agentes dessa mesma mídia foi ferido e morto por manifestantes. O momento atual já é outro.
ÀM – No mesmo incidente, a Globo – e em sequência a editora Abril – deram destaque para a alegação de um estagiário do advogado de um dos suspeitos, de que os responsáveis estariam ligados ao Deputado Marcelo Freixo (PSOL), alegação divulgada sem um mínimo de apuração além da palavra do estagiário. O senhor acredita que haja interesses políticos nesse incidente?
Lage – Freixo é uma figura da política que lidera, no momento, uma corrente jovem da elite – a antielite – moradores de bairros de gente rica que, em outros tempos, apoiou figuras como Fernando Gabeira e equivale aproximadamente, no Rio de Janeiro, à corrente do Partido dos Trabalhadores liderada por Marta Suplicy, sexóloga, ex-apresentadora de televisão e descendente de um barão do Império (e da indústria). Essa condição o coloca como alvo de todo tipo de insinuações, principalmente em um ano eleitoral como esse.
ÀM – Da mesma maneira, repercutiu a alegação do outro suspeito, Caio Souza, de que os manifestantes estariam recebendo 150 reais para participar dos protestos e cometer vandalismo. Novamente tentou-se acusar o Deputado Marcelo Freixo. Por que?
Lage – Há muito – pelo menos desde a invenção das Ongs – sabe-se da militância profissional, quer a serviço de uma causa, quer free lancer. Quanto a quem pagou, não há, como em geral, registro disponível.
ÀM – O conservadorismo tem ganho presença nas redes sociais, assim como no cenário político e na mídia, a julgar por comentaristas como Rachel Sheherazade, Luiz Carlos Prates e Rodrigo Constantino. Que interesses o senhor vê por detrás disso?
Lage – Em todo o mundo – está aí mesmo a Ucrânia – os interesses dominantes no Ocidente, principalmente os americanos, vêm-se associando a movimentos de extrema direita . Esses personagens, em si irrelevantes (Prates, por exemplo, jamais imaginou ser algo mais do que um enfezado crítico dos buracos de rua de Florianópolis), ganharam, então, espaço. A estupidez dos que contestam suas estultícies ajudam a lhes dar relevância.
ÀM – Como você definiria a postura da polícia nas manifestações brasileiras?
Lage – Incompetente, porém contida em seu ímpeto de violência.
ÀM – E a dos manifestantes? O que pode ser dito, e o que seria exagero ou distorção?
Lage – Difícil é saber o que não é exagero ou distorção quanto a protestos no Brasil quanto, principalmente, nos que ocorrem Venezuela. Repórteres falam com gente parecida com eles e que se expressa em inglês – não com os que apoiam Maduro.
ÀM – Enquanto a violência dos protestos no Brasil é duramente condenada, e a repressão policial cada vez mais vem sido elogiada, a cobertura de protestos internacionais trata a situação de forma completamente contrária, apoiando implicitamente movimentos golpistas tais quais os da Ucrânia. Por quê?
Lage – Por causa da freada que os americanos levaram na Síria, de seu desejo de consolidar seu “século americano” empurrando a Rússia para o Oriente e, se possível, fragmentando-a etc.
ÀM – Em seu ver, o discurso pedindo a volta dos militares ao poder, é uma ameaça plausível, ou trata-se apenas de bravatas de quem acha que democracia se faz no grito?
Lage – Em termos de apoio popular, é irrelevante. Pode, no entanto, resultar no apoio a um golpe que se ensaiou nos meios jurídicos com o processo do mensalão, com ampla cobertura da grande mídia.
ÀM – Quanto a questão dos protestos internacionais, e a possibilidade de intervenção militar russa na questão ucraniana, o que isso significa para o jornalismo? Para que direção esses protestos tem seguido, e que interesses representam?
Lage – É cedo para avaliar
ÀM – O que pode se entender da onda aparente de “justiciamentos” trazida a tona após o incidente do rapaz amarrado ao poste (e da jornalista Rachel Sheherazade fazendo apologia da “justiça” popular)? Seria um fator atual, ou algo que estava “por baixo dos panos”?
Lage – Amarrar um ladrão ao poste à espera da polícia (quem o amarrou teme represálias ou não quer se envolver em inquéritos policiais) não é necessariamente “justiciamento”. Faz-se muito sensacionalismo e se dá repercussão a quem não merece.
ÀM – Por ocasião do episódio do rapaz, houve quem negou o cárater racial do incidente. Quando houve a repressão aos rolezinhos, negou-se o cárater racial da questão. Agora, na prisão do ator Vinicius Romão de Souza, confundido com um assaltante, novamente houve quem negasse qualquer cárater racial no incidente, ou que haja racismo no país. No seu ver, somos um país racista? Por que se nega (ou se afirma) essa questão?
Lage – A moça que reconheceu erradamente o ator é negra e nos rolezinhos há jovens de todas as raças. O movimento negro fundamenta-se na atribuição de caráter racial à luta de classes, o que faz sentido em parte do país (Sudeste), mas não tanto no Sul, onde predomina a colonização europeia recente, e na Amazônia, onde é dominante a população indígena. Para construir sua narrativa, a liderança do movimento negro adapta sua retórica importada dos Estados Unidos, passando a considerar negro todo não-branco, definido nas estatísticas locais como “pardo” – estes sim, a maioria.
É claro que há racismo no Brasil, como em qualquer país do mundo. Mas também é claro que a maioria da população não é racista, o racismo é considerado degradante e a referência racial é perigosa porque as famílias brasileiras, por brancas que pareçam, têm antecedentes ou ramificações multirraciais. Um estudo genético comprovou que de ascendência totalmente europeia, de fato, o contingente da população não passa dos 20 por cento.